São José: seu noivado com Maria e a paternidade legal de Jesus

José, uma figura modesta, apesar da descendência davídica, documentada pela genealogia colocada na abertura do Evangelho de Mateus (1,1-17).  A esta tem de acrescentar-se um posterior dado histórico ligado ao nascimento do filho Jesus, mas muito difícil de definir na sua cronologia precisa. Trata-se de um recenseamento imperial romano imposto pelo governador da Síria, Quirino (c.51 a.C. – 21), de acordo com uma modalidade étnico-tribal e não residencial, evocado pelo Evangelho de Lucas (2,2).

Concretamente, o registro devia ser feito na sede originária da ascendência do clã familiar. É, precisamente, Lucas a assinalar que “José da Galiléia, da cidade de Nazaré, teve de subir à Judeia, à cidade de Davi chamada Belém porque pertencia à linhagem e à família de Davi” (2,4).

Vamos lançar um olhar antes de mais à experiência desconcertante vivida por este artesão por ocasião do nascimento do filho, ocorrida durante os dias daquele recenseamento, talvez em 7/6 a.C., num alojamento improvisado em Belém. Regressemos, por isso, ao texto de Mateus: “Assim foi gerado Jesus Cristo: a sua mãe Maria, sendo noiva de José seu esposo, dado que era um homem justo e não queria acusá-la publicamente, pensou repudiá-la em segredo. Enquanto, no entanto, estava a considerar estas coisas, eis que lhe apareceu em sonho um anjo do Senhor, e disse-lhe: José, filho de Davi, não temas tomar contigo Maria, tua esposa. Com efeito, o menino que está gerado nela vem do Espírito Santo; ela dará à luz um filho, e tu chamá-lo-ás Jesus: Ele, com efeito, salvará o seu povo dos seus pecados” (1,18-21).

No antigo Israel, o casamento compreendia duas fases distintas, mas ligadas. A primeira era o noivado oficial, cuja ratificação tinha um relevo particular para a mulher: apesar de continuar a residir na casa paterna, era considerada já esposa do futuro marido, pelo que toda a infidelidade era rubricada como adultério. A segunda fase compreendia a celebração nupcial, com a transferência para a casa do esposo, com cantos, danças e banquetes, evento evocado por uma sugestiva parábola de Cristo, a das jovens sábias e desleixadas (Mt 25, 1-13).

A narrativa acima coloca-se na fase do noivado: “antes que fossem viver juntos”, a noiva-esposa Maria “encontrou-se grávida”. José está perante uma opção dramática, a do repúdio em sentido estrito, de tal maneira que Mateus usa o verbo grego “apolýsai”, o termo técnico do divórcio, com todas as consequências penais e civis dramáticas para a mulher. Por fortuna, nem sempre no judaísmo se aplicava a letra da lei bíblica, que era implacável: “Se a noiva não for encontrada em estado de virgindade, então fá-la-ão sair da entrada da casa paterna e a gente da sua cidade lapidá-la-á até à morte” (Dt 22,20-21).

É fácil a referência à cena que se consumará na esplanada do templo de Jerusalém com a adúltera prestes a ser lapidada e salva por Jesus com a célebre frase: “Quem de vós está sem pecado, lance primeiro a pedra contra ela” (Jo 8,1-11).

José está apaixonado por Maria e não sabe como tornar menos atroz para ela a condenação. Como “homem justo”, isto é, correto (não pode avalizar com o seu nome uma criança de pai desconhecido), mas também manso e compassivo por aquela que era já a sua mulher, opta por um repúdio secreto, sem o procedimento legal oficial, evitando a entrega formal do “libelo de repúdio”, diminuindo assim também o eventual risco do recurso à lapidação por parte da parentela.

Enquanto está interiormente ferido, a sua obscuridade interior é rasgada por um clarão de luz que se expressa através de uma forma clássica já no Antigo Testamento, uma epifania angélica. Ora, na Bíblia o anjo é sinal de uma revelação divina, e José experimentará a sua presença por várias vezes na narrativa dos dois capítulos de Mateus dedicados ao nascimento e à infância de Jesus.

Trata-se, portanto, de uma forte experiência interior que o impele a uma opção diferente: ele tem de conduzir ao seu termo também a segunda fase do casamento, “tomando consigo Maria sua esposa”, porque naquela mulher aconteceu um evento único e extraordinário, uma semente divina (o próprio Espírito de Deus fecundou-a). A ele caberá a tarefa de ser o pai legal daquela criança, registrando-a com o nome de Jesus, que significa “o Senhor salva”.

Uma prática, a da paternidade legal ou putativa, confirmada também noutros casos pelas Sagradas Escrituras, como para o denominado levirato (do latim levir, cunhado), assim formulado pela lei bíblica: “Quando um dos irmãos de uma família morrer sem deixar filhos, a mulher do defunto unir-se-á com um seu cunhado que a tomará como mulher… O primogênito que ela gerar terá o nome do irmão morto, para que o nome deste não se extinga em Israel” (Dt 25,5-6; leia-se também em Mateus 22, 23-33, com um caso paradoxal de levirato, proposto a Jesus pelos saduceus, a

Prof. Dr. José Pereira da Silva

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