No seu ofício de pastor universal da Igreja, o Papa se dirige aos fiéis de vários modos, formais e até mesmo informais (como numa entrevista ou numa fala de improviso, por exemplo, que não caracterizam um ensinamento oficial do Santo Padre).
Dentre os muitos modos formais do Papa se pronunciar e ensinar na Igreja, as homilias feitas nas celebrações, os discursos, as catequeses são os mais comuns. Outras vezes, o magistério do Santo Padre acontece por meio de documentos mais longos, como as Encíclicas, Exortações Apostólicas e as Cartas Apostólicas. Finalmente, existe um tipo de documento papal que se chama “motu próprio”. Trata-se de normas para a Igreja Católica expedidas diretamente pelo próprio Papa por força de sua autoridade como Sucessor do Apóstolo São Pedro. A expressão “motu próprio” poderia ser traduzida como “de sua iniciativa própria”.
Recentemente, o Papa Francisco apresentou um motu proprio chamado “Traditionis custodes” (Guardiões da Tradição). Esse documento estabelece novas normas sobre o uso da Liturgia da Missa anterior à reforma litúrgica de 1970, fruto do Concílio Vaticano II.
Para entender o porquê desse documento do Papa, precisamos recordar que nos anos seguintes ao Concílio Vaticano II (encerrado em 1965), em razão de situações históricas específicas, a celebração da Missa no chamado “rito antigo” ou “ rito de São Pio V” foi restrita a casos particulares, sempre com a necessidade de expressa autorização da autoridade da Igreja.
Contudo, desde 2007, por uma concessão do Papa Bento XVI, também dada num motu proprio, a forma litúrgica pré-conciliar de celebrar a Missa foi liberada para ser usada por qualquer padre católico, sem necessidade de autorização dos Bispos. Com isso, esperava-se maior unidade na Igreja e, como dizia o próprio Bento XVI, uma sadia interação entre os dois jeitos de celebrar a Missa no Rito Romano: o ordinário (a chamada Missa de Paulo VI, conforme a reforma litúrgica de 1970) e o extraordinário (a Missa de São Pio V, cujo rito se celebra pelo Missal de 1962).
Agora, o Papa Francisco modificou essa norma e restringiu novamente a celebração da Missa na forma antiga ou extraordinária. A vigilância sobre o seu uso voltou novamente para a responsabilidade direta dos Bispos Diocesanos. Ou seja, para se celebrar esse rito antigo da Missa, anterior ao Concílio, o padre precisa da autorização do Bispo Diocesano.
Essa decisão do Papa foi tomada após uma consulta realizada no ano passado aos Bispos do mundo inteiro. Tal consulta foi necessária, pois a concessão de se usar de maneira extraordinária a forma da Liturgia pré-conciliar vinha sendo motivo de discórdia e divisão na Igreja por parte de alguns grupos extremistas que a adotavam como bandeira de luta, chegando a questionar o Concílio Vaticano II, a obediência aos Bispos e ao Papa e a validade da Missa após a reforma litúrgica de 1970.
Como observa o Papa, a questão transformou-se numa problemática para a unidade da Igreja, gerando divisão. Portanto, o ponto de partida desse “motu proprio” do Santo Padre trata da aceitação do Concílio Vaticano II e da fidelidade aos Bispos e ao Sucessor de Pedro, pontos essenciais para a unidade da Igreja.
O documento de Francisco deixa muito claro que os Bispos são os “Guardiões da Tradição” e, em comunhão com o Papa, constituem o “princípio e fundamento de unidade” nas Dioceses a eles confiadas, sendo responsáveis pela regulamentação da Liturgia na própria Diocese e recorrendo a Roma nos casos previstos.
Vários pontos do documento pontifício apontam para o exercício desta missão episcopal de “organizar” o uso da Liturgia na forma antiga: aos Bispos cabe autorizar o uso do Missal Romano de 1962 na diocese, seguindo as orientações da Sé Apostólica (Art. 2); assegurar que os grupos que continuarão a celebrar segundo o missal de 1962 aceitem a válida e legítima reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, o próprio Concílio e o magistério dos papas (Art. 3 § 1); indicar o lugar e os dias para a celebração (Art. 3 §§ 2-3) e nomear o sacerdote que irá acompanhar tais grupos, zelando pela dignidade da celebração, mas, sobretudo, cuidando da pastoral e da vida espiritual dos fiéis (Art.3 § 4); não autorizar a criação de novas paróquias pessoais e nem a formação de novos grupos (Art 3. §§ 5-6)”.
Na carta enviada aos bispos para apresentar o “motu próprio”, o Papa lamentou que sejam cometidos abusos litúrgicos tanto na forma como se celebra a Missa no rito atual, também chamado de “missa nova”, quanto em relação à forma antiga.
A Liturgia é a mais alta forma de oração oficial da Igreja e, por isso mesmo, está sob a competência e o cuidado da Autoridade da Igreja. Os abusos litúrgicos devem ser sempre evitados e corrigidos e, para isso, a formação litúrgica do povo, dos clérigos e dos demais encarregados da Liturgia em nossas comunidades precisa ser constante.
Para se evitar abusos nas celebrações, precisamos retomar a formação litúrgica, conforme é desejado pelo Concílio Vaticano II, a fim de que o povo de Deus participe ativa, consciente e piedosamente das ações litúrgicas e tire o máximo proveito delas.
Somente conhecendo verdadeiramente a natureza da Liturgia (o que ela é), sua finalidade (a que ela se destina) e o seu lugar na grande Tradição da Igreja, entenderemos que ela é um dom de Deus à Igreja.
Assim, entendendo que a Liturgia deve nos levar à oração e à adoração, elevando o nosso coração a Deus, poderemos viver toda a sua beleza e superar não apenas os abusos litúrgicos, mas também a tentativa inútil de querer consertá-los criando divisões. A rivalidade entre grupos com polarização de opiniões nada de bom trazem à Igreja, pois, ao invés de edificá-la, só fazem aumentar no Corpo Místico de Cristo as feridas da divisão, colocando irmãos contra irmãos acusando-se mutuamente de lados opostos do altar – exatamente o contrário do que se espera dos discípulos do Senhor.
Pe. Leandro dos Santos
Assessor Diocesano da Liturgia