Discípulos Missionários a partir do Evangelho de Mateus

O tema proposto para o mês da Bíblia, neste ano, é Discípulos Missionários a partir do Evangelho de Mateus. Com efeito, nesse Evangelho, o grupo dos discípulos é de grande importância. Eles são apresentados seja como exemplo de fidelidade à tradição precedente, seja como modelo de receptividade à novidade trazida pela Boa-Nova de Jesus Cristo, anunciada com as características próprias da comunidade de Mateus. Na narração evangélica, os discípulos aparecem, pela primeira vez, no episódio da vocação: “Caminhando à beira do mar da Galiléia, Jesus viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes Jesus: ‘Vinde após mim e eu vos farei pescadores de homens’. Eles, imediatamente, deixaram as redes e o seguiram” (Mt 4,18-20).

Com um trecho de Isaias, citado pouco antes (cf. Mt 4,15-16), o narrador ambienta o início da atividade messiânica de Jesus na “Galileia das Nações”, que, envolta em trevas, é iluminada por uma grande luz, surgida da ação de Deus (cf. Mt 4,12-17). O primeiro raio dessa luz resplandecente a irromper naquele lugar, descrito como região sombria da morte, é a cena da vocação dos primeiros discípulos, primeiro gesto público de Jesus como Messias, enviado por Deus para chamar à conversão e proclamar o Reino (cf. Mt 4,17).

Com o aparecimento de Jesus no cenário, a narrativa procede não mais a partir do olhar do narrador. É o ‘ver’ de Jesus que passa a dominar a cena: “…viu dois irmãos”. Não se indica, de imediato, o nome ou a profissão dos personagens ‘enxergados’ por Jesus, mas o grau de parentesco entre eles: eram dois irmãos. Somente depois, seus nomes são mencionados: “Simão, chamado Pedro, e seu irmão André”. Do primeiro, é recordado o epíteto pelo qual viria a ser conhecido, indicando o papel que haveria de exercer, futuramente, na comunidade. É chamado Pedro porque é a “pedra” sobre a qual seria edificada a comunidade dos fiéis (cf. Mt 16,18). Os dois irmãos são vistos por Jesus enquanto lançavam redes ao mar, pois eram pescadores. Pela profissão, entende-se logo que não se tratava de pessoas cultas procedentes de extratos sociais abastados ou da casta sacerdotal. Ao contrário, pertencem à classe de gente simples, que labuta pela subsistência sob o peso da faina diária.

O apelo ao seguimento: “vinde após mim” caracteriza a atitude fundamental do discípulo em relação a Jesus. Ele é o Mestre que vai adiante, enquanto o discípulo é quem o segue. Tal ação, portanto, não exprime somente deslocamento espaço-geográfico, mas, sobretudo ‘conversão’, ou seja, mudança radical na escala de valores, reorientação completa da própria existência.

A segunda interpelação de Jesus joga com as palavras e com o ofício dos personagens. Os dois irmãos já eram pescadores, mas são chamados a se tornar ‘pescadores de homens’. O programa traçado por Jesus completa-se, portanto, somente quando aqueles dois irmãos, chamados ao seguimento, recebem a incumbência de colaborar na missão de apregoar o Reino: “vos farei pescadores de homens”. Eles são responsáveis, no tempo da Igreja, de convocar todas as pessoas a fazer parte da comunidade dos fiéis, como ilustra a parábola da rede lançada ao mar que recolhe todo tipo de peixe (cf. Mt 13, 47-50). Tal missão é reconfirmada pelas palavras do Ressuscitado que, do alto do Monte da Galileia, ordena aos discípulos que vão pelo mundo inteiro a pregar o evangelho a toda criatura (cf. Mt 28,16-20).

A narrativa vocacional não menciona nenhuma reação pessoal por parte dos dois irmãos. Eles não apresentam objeções, dúvidas ou apreensões. O texto não contempla perspectivas internas, mas relata tão-somente elementos exteriormente verificáveis. Com efeito, a narração não pertence ao gênero literário biográfico, que fornece informações abundantes sobre a vida dos personagens, mas é um protótipo que condensa e evidencia os elementos essenciais, não só da vocação pessoal daquela dupla de irmãos galileus, mas de toda vocação cristã. A concentração no aspecto externo visa a não bloquear o leitor numa descrição psicológica e emotiva, e pretende comunicar exclusivamente as dinâmicas da vocação em seu perfil teológico-espiritual. O fulcro do relato é a pronta e imediata adesão da parte dos dois pescadores ao chamado de Jesus. O advérbio imediatamente, presente também na cena da vocação dos outros dois irmãos, Tiago e João (cf. Mt 4,21s), faz transparecer que uma decisão dessas, que determina seriamente toda a existên
cia, tem de ser tomada de forma resoluta e sem titubear, pois quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o Reino de Deus (cf. Lc 9,62). A característica da ‘imediatez’, que delineia a cena com contornos indeléveis, evidencia que o chamado de Jesus dirigido aos dois irmãos pescadores foi irresistível e a adesão deles, inarredável. Isso se comprova pelo fato de eles abandonarem as tralhas de pesca para ir atrás de Jesus.

Próximos ao cenário da vocação de Simão e André, encontravam-se outros dois irmãos pescadores, Tiago e João, que também foram chamados por Jesus enquanto consertavam as redes. A narração não diz com quais palavras foram interpelados. O contexto, porém, permite supor que foram as mesmas dirigidas a Simão e André: “Vinde após mim”. “E eles, deixando na barca o pai Zebedeu com os empregados e as redes, o seguiram” (Mt 4,22). Embora o abandono da embarcação por Tiago e João, e das redes por parte de Simão e André torne as duas narrativas vocacionais perfeitamente simétricas, o chamado endereçado a Tiago e João traz um elemento novo: o abandono do pai Zebedeu. Seguir Jesus, colaborando efetivamente na sua missão, exige bem mais que deixar coisas e ocupação profissional. Dar esse passo na vida implica ruptura com os vínculos afetivos mais profundos: “quem ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim” (Mt 10,37). Dessa forma, a dupla narrativa completa o teor das exigências do seguimento de Jesus.

No decurso da leitura do Evangelho de Mateus, na secção da pregação do Reino, somos surpreendidos por outra narrativa vocacional: “Ao passar, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado na coletoria de impostos, e disse-lhe: ‘Segue-me’. Ele se levantou e seguiu-o” (Mt 9,9). O chamado e a prontidão com que é respondido não são novidades, pois já estavam presentes nas narrativas precedentes. O novum desse episódio é o seu contexto e as consequências daí decorrentes. Acha-se incrustado entre os dez sinais que antecipam, no nosso tempo, o Reino trazido por Jesus. Dessa forma, a vocação de Mateus e a refeição partilhada por Jesus com os publicanos e pecadores comporiam um totum (cf. Mt 9,10-13). O escândalo dos fariseus, guardiões contumazes da pureza ritual, face ao gesto de Jesus, serve a dar vazão ao conteúdo substancial do anúncio de Jesus: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes… Com efeito, eu não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mt 9,12-13). Portanto, a vocação de Mateu
s e a refeição com os ‘excomungados’ da comunidade religiosa, são epifania de um único acontecimento inusitado e definitivo que transfigura a história: a misericórdia de Deus é oferecida a todos, sem distinção.

Dessa forma, o chamado de Mateus abrigaria uma dupla dimensão, ou seja, de um lado, sua vocação pessoal de seguir Jesus de modo especial, pois segundo a tradição, ele é o mesmo apóstolo Mateus; de outro, o chamado dirigido a este homem, transgressor das leis judaicas e excluído da assembleia litúrgica, representa um veemente apelo à conversão, à fé e à salvação, endereçado a todos os pecadores, sem ressalvas. Pois, na pessoa e na atuação de Jesus foi inaugurada “a nova justiça” (cf. Mt 5,20), manifestou-se a benevolência superlativa de Deus Pai, que quer misericórdia e não sacrifícios (cf. Mt 9,13). Assim, na vocação de Mateus ribombou a Boa-nova do Evangelho: não há excluídos porque Jesus veio para buscar e salvar o que estava perdido (cf. Lc 19,10). Portanto, doravante, quem quer que ouça o apelo de Jesus: “Segue-me!” e acatá-lo, como Mateus, torna-se membro da sua comunidade, um conviva da mesa da reconciliação que ele veio oferecer a todos.

A experiência vocacional desses primeiros discípulos torna-se, portanto, paradigma de toda vocação cristã. Como a eles, Jesus chama também a nós para sermos discípulos missionários, colaboradores dele no anúncio do evangelho. Isso, obviamente, nos impõe renunciar a seguranças materiais e afetivas. O peso das exigências, porém, não nos deve atemorizar e imobilizar. Pois, nessa via, o que damos não se compara ao que recebemos, visto que o seguimento de Jesus, assumido com prontidão e decisão, nos dá acesso pleno à misericórdia de Deus Pai, que nos proporciona regeneração completa e nos torna comensais do banquete celeste.

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Frei Aloisio de Oliveira, OFMConv.
Mestre de noviços da Ordem dos Franciscanos Conventuais, em Caçapava

FONTE: O LÁBARO – SETEMBRO DE 2014

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