Olhos de santo

Mês de Nossa Senhora Aparecida. Aumentam as peregrinações às margens da Dutra e o Santuário Nacional fica cheio. O calor dos corpos apinhados aumenta a temperatura do asfalto ardente ao sol. O povo é fiel até com sensação térmica de 45º celsius.

Crescem, também, as compras de imagens de Maria Santíssima. E, para não perder a viagem, de terços, livrinhos, cruzes, bíblias, garrafas para água benta, pequenos incensários, etc. A fé movimenta todo um mercado de objetos devocionais. Não só em Aparecida do Norte, mas em todo o Brasil, Terra de Santa Cruz. O catolicismo daqui gosta da materialidade das esculturas, dos quadros, das fitas coloridas amarradas no braço. Há quem confunda isso com simpatia mágica, mas há quem, com isso, creia e reze de fato.

No caso das imagens de santo, o problema são quase sempre os olhos. Quanto ao corpo, as imagens tem seus padrões, não mudam muito; quanto aos objetos que trazem (cajados, lírios, livros…), nem sempre os detalhes são bem fabricados; quanto aos traços do rosto, dependendo do preço da peça, às vezes ficam devendo beleza.  No caso dos mantos para Nossa Senhora, tem de todo tipo: o clássico azul aveludado com detalhes dourados, uma versão “capa dura” em que o manto é feito de gesso ou resina e não se mexe, e até com bolinhas coloridas tem. Os olhos, todavia, como são difíceis de achar bonitos! São tortos, informes, sem vida, opacos como um animal empalhado.

Um artista italiano, chamado Amedeo Modigliani, que viveu de 1884 a 1920, tinha uma coisa com os olhos dos seus quadros. A maioria dos seus retratos humanos não têm o globo ocular, mas buracos vazados na face. Certa vez, ao pintar a mulher que amava, Jeanne Hébuterne, ela ficou incomodada com seus olhos vazados (logo ela que tinha belíssimos olhos azuis) e perguntou para o pintor o porquê disso. A resposta foi: “quando conhecer sua alma, pintarei seus olhos”.

Hoje em dia, há muitas fábricas de santos que produzem em escala industrial e mais com maquinário do que com artistas. É fato que a tecnologia vai permitindo, cada vez mais, uma produção de excelência sem que a mão humana toque diretamente em nada. No entanto, um artista continua sendo importante, porque ele, ao contrário do computador, conhece as almas, ele é todo alma. Antes das fábricas, havia os santeiros, homens dedicados à artesania da fé em barro e madeira. Aos poucos eles caem em extinção. O preço de fábrica, por sua vez, é sempre mais acessível ao pobre fiel, que acaba rezando com o que seu salário permite.

Temos mais imagens, sim. Mas menos alma também.

Quem nos devolverá os olhos dos santos?

Pe. Marcelo Henrique, reitor do Seminário de Filosofia

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