Ana: uma vida doada aos abandonados e esquecidos

Por Pe. Jaime Lemes, msj

Era por volta das 10 da manhã quando cheguei ao endereço informado, na Vila São José, região da Rodoviária Nova, número 271 da rua Geraldo de Bona, bem no final. Fui recebido ao portão por um senhor bem-educado que me conduziu até a minha entrevistada. Veio ao meu encontro, com a perna um pouco recalcitrante, uma senhora sorridente, Ana Maria dos Santos. Explicou-me depois que havia torcido o tornozelo ao descer a escada. Natural de São José do Barreiro, na divisa do Estado do Rio de Janeiro, considera-se taubateana de coração. Com paciência e entusiasmo contou-me a história daquele lugar, que se mescla à história de sua vida. Ao 59 anos e mãe de três filhos, Ana é a fundadora e coordenadora da Casa de Acolhida Madre Teresa de Calcutá, um lugar simples e acolhedor, como aquela que inspirou essa obra. Quando fala da Madre que será canonizada em setembro deste ano, ela se emociona e recorda uma frase que a marca profundamente: “Eu sou apenas uma gota no oceano, mas o oceano seria menor sem esta gota”. – Quando ela for canonizada, vamos fazer uma grande festa! Promete.

O LÁBARO: Fale um pouco sobre a sua experiência religiosa.

Ana: Eu sempre digo que aprendi a amar a Deus através do meu pai. Ele era muito religioso e me ensinou esse amor tão lindo por Deus. A herança que o meu pai deixou foi o amor a Deus. A minha vivência religiosa começou com o meu pai e também com a minha mãe. Apesar de eles terem se separado depois de alguns anos, ele me ensinou muito essa parte de espiritualidade. Quando eu me tornei adolescente, comecei a participar já da comunidade. Sempre gostei muito de estar inserida nos trabalhos da comunidade, sempre muito atuante. Participei por mais de vinte anos na Paróquia Sagrado Coração de Jesus. Foi lá que comecei uma caminhada muito profunda dentro da Renovação Carismática. Mas eu dizia que estaria em renovação. A Renovação Carismática nos ensina a espiritualidade, a profundidade do amor de Deus para que nós possamos sair e servir. Este é o fundamento. Foi isso que eu aprendi. Padre Léo, que era ali do Sagrado Coração de Jesus – e eu tive anos muito profundos com ele, com retiros –, ele sempre dizia que quando somos batizados no Espírito Santo, nós precisamos ir a serviço. Isso nunca mais saiu do meu coração. Foi o que aconteceu comigo. Esse encontro pessoal com o Senhor, esse olho no olho, coração palpitante, esse amor profundo pelo senhor… eu saí a serviço. Quando recebi a mensagem do Kerigma, que Deus ama você, foi o que eu também quis transmitir para outro. Pois, se Deus me ama, Ele ama a todos. O amor de Deus é um amor incondicional. Foi uma coisa muito marcante. A partir daí, comecei essa missão.

ana-maria-dos-santos-o-labaro-jun01-2016

O LÁBARO: Quando e como despertou o desejo de iniciar a obra “Casa de Acolhida Madre Teresa de Calcutá”?

Ana: Eu não tinha nem noção do que eu iria fazer. Na época, em 2002, o Fráter Anísio – hoje, padre – com o qual eu tinha bastante amizade, nos ajudou a criar uma rádio, mas em situação irregular, não era legalizada. Ele começou a trabalhar conosco na comunidade, nos incentivando. Eram mais de 80 pessoas envolvidas. Eu era locutora lá. Fazia um programa de espiritualidade. Era a Rádio Restauração. Quando a Anatel a fechou, pois não conseguimos legalizá-la, o Fráter Anísio nos convidou a fazer um outro trabalho. Ali na rádio, estávamos evangelizando pelos microfones, e ele nos chamou a evangelizar corpo a corpo. Então, a moção mesmo da fundação desta casa veio dele. Ele falava para a gente assim: “nós vamos converter as mãos”. Pois era um trabalho em que iríamos estar próximo das pessoas. Isso marcou muito o meu coração. E quando ele fez esse convite para nós, nós fomos fazer um retiro. Era 15 de setembro de 2002. É a data que eu considero como sendo a fundação desta comunidade. Ali firmamos um propósito e fizemos um ano de caminhada. Ele nos propôs a estudar a vida de Madre Teresa, para conhecer melhor o seu carisma. Foram 30 pessoas que fizeram aquele retiro, mas, no decorrer do ano, muitos saíram. Quando começamos a trabalhar mesmo, que era assistir os mais necessitados, ele já era diácono e iria se ordenar padre. Então ele disse: “vocês sabem que eu vou para outra comunidade e são vocês que vão continuar esse trabalho”. Foi quando, então, eu assumi a linha de frente de todo o trabalho. Foi feita uma eleição e me escolheram como responsável para coordenar essa missão.

O LÁBARO: No início já era “Casa de Acolhida Madre Teresa de Calcutá”?

Ana: Nós começamos como Comunidade Restauração, depois foi mudado. Antes de tudo, na verdade, havia a Associação, a GAJUS. Esta sigla são as iniciais do nome dos bairros que atendíamos, dando assistência às pessoas mais pobres: Gurilândia, Ana Rosa, Jaraguá, Urupês e Shalom. Quando tinha festa das crianças, nós fazíamos toda uma organização: conseguíamos presentes, fazíamos uma comidinha gostosa, e a criançada ia lá. Nós tínhamos uma sede na Gurilândia, onde pagávamos aluguel. Depois disso, a gente precisava discernir verdadeiramente o que a gente queria, porque não dava para ficar só nisso. Não dava mais para ficar naquele bairro, pois já não tínhamos mais condições de pagar o aluguel. Nessa época o presidente da Associação, o Alexandre, foi conversar com o Dom Carmo e ele cedeu este lugar onde estamos hoje.

O LÁBARO: O que é a “Casa de Acolhida Madre Teresa de Calcutá?

Ana: Quando viemos para esta casa, foi mudado o nome da associação, que passou a se chamar Associação Beneficente Madre Teresa de Calcutá. Nessa época já havíamos discernido que o nosso trabalho seria cuidar, porque foi uma das frases que mais marcou o meu coração. Madre Teresa dizia assim: “A minha comunidade são os pobres”. Dizia ainda: “Nós vamos cuidar do resto da sociedade”. Isso me marcou muito, porque era a fase que nós estávamos vivendo em 2002. As pessoas excluíam muito o dependente químico, o irmão de rua, o bêbado… enfim. Eles são injustiçados porque ninguém acredita mais neles. Foi isso então que eu discerni de toda a caminhada que eu estava fazendo: que precisaríamos cuidar daqueles que ninguém queria mais. Era isso que era preciso fazer. Então essa foi a proposta lançada para aqueles que ainda estavam comigo. Quando a gente começou, demos o nome de Casa de Acolhimento Madre Teresa de Calcutá. No início, a gente não sabia nada. Aos poucos é que fomos aprendendo. Começamos pegando irmãos do Albergue Municipal para alcançar aqueles necessitados. Conhecemos o Albergue, falaram para nós da necessidade daqueles irmãos que ficavam ali fechados, ociosos. Convidamos alguns para vir para a nossa casa, para ficar aqui na parte da manhã. Fazíamos um bom café com o que a gente tinha; ganhávamos pão duro e fazíamos torradinha, umas coisinhas diferentes, e dávamos para eles. No prazo de um mês, já havíamos ganhado cestas básicas e um monte de outras coisas. Pensava: “se conseguimos isso é porque Deus está abençoando o nosso trabalho e é essa a vontade de d’Ele, então vamos fazer o almoço”. Daí começamos a fazer o almoço, dar o café da manhã e eles tomavam banho na nossa casa e passavam alguns momentos conosco. Agente os acompanhava, levava-os a terem gosto de varrer um quintal, de plantar uma árvore, uma fruta. Aos poucos foi mudando o ritmo de nossa casa. Nisso, os fráteres dehonianos nos ajudaram muito. Eu não sabia nada, era leiga, não entendia nada de leis. Comecei a acolher os meninos. Eu sozinha. Tinham alguns voluntários, mas eu morava aqui, dormia com eles aqui sozinha. Os fráteres pediam para eu tomar cuidado. Mas eu dizia que não iria acontecer nada, e, com a graça de Deus, nunca aconteceu mesmo. Eu chegava a acolher meninos aqui até meia-noite, uma hora da manhã. Sei que eu fui muito imprudente, mas foi assim que começou o nosso trabalho. Já cheguei a acolher aqui 23 meninos de uma vez só. Daí as coisas foram mudando, com a ajuda e orientação dos fráteres. O Fráter Carlinhos, que hoje é padre, ele é advogado e ajudou a arrumar toda a documentação. E assim é a Comunidade Madre Teresa de Calcutá, que eu gostaria muito que fosse uma comunidade consagrada. Porque eu posso até não ser uma consagrada de fato, mas para Deus eu sou. Fui casada, mas meu esposo era alcoólatra e não quis mais viver comigo. Depois de quatro anos separada, fui convidada a essa missão. Sempre tive muito forte no meu coração de ser uma consagrada, mas nunca tive nenhuma orientação. Acabei casando muito nova, com 16 anos. Mas a minha vontade era ser uma irmã consagrada. Hoje, o meu sonho é esse: uma comunidade consagrada. Já tive até vontade de entrar em outras comunidades consagradas por eu não ter apoio aqui. Às vezes eu pergunto para Deus: “Senhor, é da sua vontade essa casa?”. Hoje, nós somos uma entidade documentada, uma casa de acolhimento em república. Até expliquei isso outro dia a um padre que ligou aqui para mim, que não somos uma casa de recuperação, mas de acolhimento.

O LÁBARO: Quantas pessoas são atendidas atualmente e qual é a dinâmica da casa?

Ana: Atendemos uma faixa de 50 irmãos, na segunda, quarta e sexta, para almoçar e tomar banho. Através desse acolhimento é que alguns começaram a pedir para ficar. Atualmente, são dez acolhidos residentes. Destes, quatro já trabalham fora. Eles vêm da rua muitas vezes desestruturados, muitos até de casas de recuperação. Ficam conosco aqui um tempo para podermos conhecê-los e ver realmente o que eles querem. Nós temos aqui a assistente social e o psicólogo que os acompanham. Nesse tempo que eles ficam aqui, a gente trabalha muito essa parte psicológica para melhorar a autoestima deles. Além disso, oferecemos o serviço de documentação, porque muitos chegam aqui sem nenhum documento, e também arrumamos trabalho. Quanto à rotina da casa, além do acompanhamento psicológico e espiritual, eles colaboram nos trabalhos da casa. Temos o quintal, onde plantamos o pomar, a horta, temos criação de galinha. Entrando aqui, eles não podem ficar ociosos. Então dividimos os trabalhos entre eles. Damos a eles uma motivação, mostrando que se eles plantarem vão colher, se cuidarem do pomar, vão poder comer das frutas que ele produzir. Tem um menino aqui que faz dez anos que está com a gente, por opção dele. Arrumamos toda a sua documentação, e aqui ele foi batizado, fez primeira comunhão, foi crismado. Ele quer estar conosco. Mas muitos chegam aqui, logo arrumam trabalho fora e procuram um lugar para eles morarem.

ana-maria-dos-santos-o-labaro-jun02-2016

O LÁBARO: Tem um tempo estabelecido para a permanência na casa?

Ana: Depois que eles saem para trabalhar, podem ficar na casa até três meses. Muitos chegam bem, às vezes só com a falta de cuidado físico. A gente procura trabalhar a partir das necessidades deles. Mas o problema mais comum é o da autoestima. Daí o psicólogo e a assistente social fazem um trabalho com eles nessa parte. Eu também, embora não sabendo muita coisa, faço um acompanhamento, dando o colo de mãe. Se eles estão bem, dentro de um a dois meses, eles já saem para trabalhar. Isso se eles quiserem, porque é tudo dentro da vontade deles. A gente não os obriga a nada, não exige nada. A única coisa – vou ser bem sincera – é que eles não podem ficar ociosos. Eles sempre têm de estar fazendo algo.

O LÁBARO: A casa acolhe pessoas de ambos os sexos?

Ana: Para ficar na casa é só masculino, agora, para tomar banho e se alimentar acolhemos homens e mulheres.

O LÁBARO: Qual a razão de terem optado por dar uma assistência mais integral aos homens?

Ana: Na verdade, não fizemos uma opção ou priorizamos, foi acontecendo. Mas é mais difícil voluntários para cuidar de mulheres. As mulheres são mais delicadas. Exige uma preparação mais adequada para quem vai cuidar delas, daí ser mais difícil encontrar voluntários. Mas é o meu sonho conseguir montar uma casa para acolher mulheres, sobretudo, as mulheres grávidas, e cuidar dos bebês delas. Mas ainda não tive oportunidade. Eu vejo uma necessidade muito grande de se fazer esse acolhimento.

O LÁBARO: Como é a relação das pessoas que são acolhidas com os seus respectivos familiares? É feito algum trabalho de aproximação ou de reinserção dessas delas na família?

Ana: Sim. Nós temos todo um trabalho com a família, isso quando a família aceita. Porque, normalmente, quando eles vêm, vêm totalmente desestruturados, com família que não os aceita mais, que não acredita que tenha mais jeito. Mas é um trabalho de formiguinha, de conta-gotas mesmo. Tem alguns que já voltaram para a família. Temos até um voluntário aqui que hoje vive com a família, mas, na época, a família não queria mais. Depois de dois anos comigo, eu fazendo esse trabalho, insistindo com a irmã para vir visitá-lo, um dia ela apareceu. Eu costumo dizer que é um namoro que eu faço com a família até promover o reencontro. Nisto a assistente social e o psicólogo também ajudam bastante.

O LÁBARO: Como é feita a manutenção da obra? Existe algum apoio financeiro, alguma verba?

Ana: Não. Nós não temos nada certo. Nós vivemos realmente de doação, da providência divina. Mas nós também aprendemos que providência divina não é ficar esperando que as coisas caiam do céu, mas é dar os nossos passos, e assim Deus providenciará. A gente sempre trabalhou dessa maneira: nós vamos e pedimos, vamos e fazemos. O que temos de recurso aqui que nos ajuda é a nossa pechincha. Não é brechó, é pechincha mesmo. Temos também o trabalho com reciclagem. Não pedimos para os meninos catarem, mas as pessoas trazem para nós. E se precisar, nós vamos buscar. Nesse sentido, tem um condomínio que junta para nós, e nós vamos buscar, ou então vai algum voluntário. Além disso, temos criação de galinha, plantação de mandioca, de abóbora. Então vendemos galinha, ovos, mandioca, abóbora. A plantação de hortaliças é só mesmo para o consumo. É assim que entra algum dinheiro para pagarmos as contas mensais e os funcionários, que são a assistente social, o psicólogo, o monitor e o cozinheiro.

O LÁBARO: Quais os desafios para a realização dessa missão?

Ana: O maior desafio é conseguir pessoas para ajudar nesta casa, para serem voluntárias. Não estou pedindo para as pessoas virem ficar o dia inteiro aqui, mas bastaria que doassem uma hora de seu tempo, de sua vida para esse trabalho, porque temos muito a fazer por essas pessoas que sofrem tanto.

O LÁBARO: Qual a sua grande alegria na realização desse trabalho?

Ana: Eu não sei como me expressar. Mas eu amo fazer isso, dar a minha vida por este trabalho. Tem bastante situações, porque sou mãe e sou vó, tenho um filho dependente, e sofro muito com essa situação. Mas sou uma pessoa muito feliz, realizada, embora nem sempre o nosso trabalho seja reconhecido.

O LÁBARO: Como a sua família reagiu à sua decisão de realizar este trabalho?

Ana: Quando me decidi assumir verdadeiramente esta missão, primeiramente conversei com os meus filhos. Meu marido já tinha ido embora. Mas eu também chamei ele e conversei sobre a minha decisão e o convidei a estar comigo, porém, ele não quis. Os meus filhos tiveram uma boa aceitação. Tanto que no início, dois moravam comigo. Mas depois que estudaram e começaram a trabalhar, eles também foram tomando o próprio rumo, e eu fiquei aqui. Hoje, eu tenho o apoio de toda a minha família, principalmente dos meus filhos. Mas a minha vida é aqui.

O LÁBARO: A senhora realiza esse trabalho de acolhimento às pessoas da rua, muitas delas com dependência química. Por outro lado, como disse, também tem um filho dependente químico. Como é lidar com essa situação?

Ana: É de Deus, é muito de Deus que veio essa missão para a minha vida. Quando eu descobri que meu filho era dependente, logo fui assumir a missão. Mas não sabia que eu iria trabalhar com dependente químico. Comecei a caminhada no grupo e só depois começamos o trabalho de acolhimento aos irmãos de rua e dependentes químicos. Foi muito de Deus, porque quando assumi verdadeiramente essa missão, como eu aprendi a lidar com o meu filho! Não é fácil. Ele ainda é dependente. Sofro bastante. Mas temos uma relação de muito respeito. A gente aprende a conviver.

O LÁBARO: Que mensagem a senhora quer deixar aos nossos leitores?

Ana: Espero que muitos leiam. E aqueles que não conhecem e vão conhecer agora, saiba que tudo o que eu faço, faço com muito amor. Não tenho salário, não ganho nada. O que ganho muito aqui é a graça de Deus. Saiba que alguma coisa você pode fazer para o outro. Como dizia Madre Teresa: “Você pode fazer o que eu não posso. Eu posso fazer o que você não pode. Juntos, podemos fazer coisas grandiosas”.

Fonte: Jornal O Lábaro – edição maio/2016

×