Leigo e Professor, Walter Lisboa fala sobre sua vida dedicada à Bíblia

O mês de setembro é dedicado, no Brasil, a celebrar a Palavra de Deus. Fonte de sabedoria ética, antropológica e, sobretudo, religiosa, a Bíblia é o “Livro dos livros” para os cristãos. Para a entrevista deste mês, nada mais oportuno do que ouvir alguém que vive a maior parte do seu tempo se dedicando a entender e a ensinar a Palavra.

Natural da Argentina, leigo, casado há vinte e dois anos com Maria Angélica Franco Moreira, professora de História da Igreja, pai de dois filhos, Miguel (20 anos) e Isabel (17 anos), Walter Eduardo Lisboa é professor de bíblia há 21 anos! Atualmente lecionando na Faculdade Dehoniana (Taubaté- SP) e na Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI (Mogi das Cruzes – SP), será ele o nosso entrevistado desta edição.

O LÁBARO: Professor, como foi que começou sua história com o estudo e o ensino da Sagrada Escritura? O senhor sempre quis se dedicar a isso?

walter-lisboa01Prof. Walter: Posso dizer que uma primeira aproximação séria com a Palavra de Deus foi quando tinha uns quinze anos, por ocasião de um retiro inaciano durante as férias escolares. Depois, na minha vida universitária esse contato se intensificou ao participar de grupos de pastoral universitária, que tinham como um de seus objetivos levar a Palavra nesse ambiente particularmente juvenil. Isso requeria naturalmente uma preparação melhor, leituras e reflexões mais comprometidas. Posteriormente tive a graça de encontrar pessoas que tinham dedicado suas vidas ao estudo e ao ensinamento da Bíblia; pessoas que me impressionaram pela clareza e certeza de sua vida de fé.

Tudo isso aconteceu quando eu vivia na Argentina. Nessa época meu interesse era mais de curiosidade por conhecer a vida de certos personagens bíblicos que apareciam como modelos de vida e fé. Não existia em mim a ideia de estudar metódica e cientificamente a Bíblia, ou de “passar” a outros meus conhecimentos adquiridos. Isso viria mais tarde, no final dos anos 80, quando surgiu providencialmente a possibilidade de estudar de forma acadêmica a Sagrada Escritura.

O LÁBARO. Em que instituições de ensino o senhor estudou Bíblia e quais as marcas que elas lhe deixaram como estudioso da Escritura?

Prof. Walter: Entre 1990 e 1994 estudei Bíblia em duas instituições, diferentes e complementarias. A primeira em Roma, no Pontificio Istituto Biblico (PIB). Ali, a abertura ao mundo bíblico aconteceu concomitantemente com a abertura à cultura mundial, que chega por meio dos colegas provenientes de diversos lugares do mundo. Para quem gosta de livros, o PIB tem uma das bibliotecas mais especializadas no referente ao mundo bíblico. Nesse sentido, me sentia em casa.

A segunda em Jerusalém, na Escola Bíblica e Arqueológica (École Biblique et Archéologique – EBAF). É a instituição que produziu a conhecida Bíblia de Jerusalém, e que tem uma tradição muito respeitável no que concerne à pesquisa arqueológica. Ali, o mundo bíblico se conhece caminhando a geografia, respirando a atmosfera que está presente como pano de fundo nos escritos bíblicos, especialmente nos referentes à vida de Jesus e dos primeiros discípulos. Em Jerusalém também participei das visitas arqueológicas organizadas pelo Centro Bíblico Franciscano (Studium Biblicum Franciscanum). Apesar da tensão constante entre palestinos e israelenses, conseguimos realizar um semestre de estudos e conhecimento da Terra Santa.

Então posso dizer que ambas instituições deixaram a marca positiva de uma metodologia científica para a leitura e interpretação dos textos bíblicos.

O LÁBARO: O que foi mais difícil nesse período de estudos?

Prof. Walter: Para que tem a possibilidade de estudar o que gosta, e nos melhores lugares para isso, é árduo encontrar pontos negativos ou inconvenientes que, com a simples boa vontade, não possam ser superados. Falaria melhor de exigências. Sem dúvida, nessa etapa dos estudos, o que mais exigiu de mim foi adquirir bom domínio das línguas: tanto das que fazem parte dos originais bíblicos (hebraico, grego e aramaico), quanto das modernas em que são ministradas as aulas.

Deve se considerar que naquela época o mundo da computação estava afirmando-se, e por tanto, não tínhamos a facilidade de acesso dos materiais de estudo que hoje existe. Mesmo assim, essa “carência” ajudou a educar e fortalecer o uso de nossa memória natural.

O LÁBARO: Como foi o início de sua vida como professor?

Prof. Walter: Terminando essa etapa de estudos, fui convidado a ministrar aulas de Bíblia na cidade de Mogi das Cruzes, na Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI. Desse modo simples começou a etapa que me define também como professor de Bíblia. Evidentemente meus primeiros alunos sofreram grandemente, pois minhas exigências primeiras eram “desproporcionadas” com relação a seus interesses imediatos. Foi necessário por tanto um tempo de adaptação para conhecer e superar essa distância, e aprender a ser guia e amigo dos alunos. Com efeito, o professor vai tornando-se tal na medida em que aprende a adaptar-se aos novos interlocutores, a suas necessidades e a suas expectativas.

O LÁBARO: Quais disciplinas o senhor ensina atualmente? Qual delas é sua preferida e por quê?

Prof. Walter: Nas faculdades em que ensino, a grade de matérias bíblicas é abundante, e como a disponibilidade de professores de Bíblia não é infinita, é habitual assumir as várias disciplinas que abarcam o Antigo e o Novo Testamento. Penso que já passei por todas elas. Neste semestre, por exemplo, ministro as chamadas Cartas Católicas (Tg, 1-2Pd, 1-3Jo, Jd), Apocalipse, Evangelho de João e os Livros históricos do AT (Js, Jz, 1-2Sm, 1-2Rs).

Posso dizer que me encontro mais cómodo na área do Novo Testamento, pois dedico bastante tempo em estudar o referente ao mundo histórico-cultural dos primeiros séculos do cristianismo. Todos os quatro Evangelhos trazem continuamente riquezas e desafios, mas penso que João, por sua linguagem e teologia, se aproxima mais à minha personalidade espiritual.

O LÁBARO: Quando alguém lhe pergunta qual sua profissão e o senhor responde que é professor de Bíblia, qual as reações? Não é muito comum para as pessoas em geral pensar que existe um biblista que não seja padre ou freira… Como é ser um leigo professor de Bíblia, ensinando, inclusive, futuros padres?

Prof. Walter: Realmente não é muito fácil entender imediatamente em que consiste ser biblista. Contudo, é necessário esclarecer que esta missão ou ministério não termina no interior de uma sala de aula, pois minha formação me permite enfrentar outros trabalhos, especialmente o de tradutor. De fato, tenho traduzido obras, sempre dentro da área bíblica, para as editoras Paulus e Paulinas. Alguns de estes trabalhos são obras realizados com outros colegas; por exemplo, o Dicionário Hebraico-Português (Paulus) e, ultimamente, a nova tradução da Bíblia organizada pela editora Paulinas. O Novo Testamento está disponível no mercado desde o início deste ano; o Antigo Testamento ainda demorará mais três anos.

Do mesmo modo, o ensino não se restringe ao universo seminarístico, ainda que seja o mais evidente. As pastorais diocesanas e os leigos requerem, cada vez mais, formação na área bíblica. Em ambos os ambientes as reações são das mais variadas, mas certamente prevalece uma resposta positiva, especialmente daquelas pessoas que estão abertas e dispostas a serem tocadas profundamente pela perene novidade da Palavra.

O LÁBARO: Se alguma pessoa se interessar por dedicar sua vida à pesquisa e ao ensino de Bíblia, quais os passos deve seguir para construir essa carreira acadêmica?

Prof. Walter: Evidentemente, como toda carreira acadêmica, a pessoa interessada deverá conciliar certa paixão inicial pela Sagrada Escritura com o esforço por desenvolver as capacidades intelectuais e espirituais pertinentes. Se possuir certo “gosto natural” pelas línguas, não encontrará maiores dificuldade para encará-las. E como em outro ramo do saber, também no mundo bíblico há diversas áreas onde poder aplicar os interesses e as potencialidades pessoais.

Falando concretamente, quem se interessar deverá primeiro adquirir uma formação teológica (Bacharelado), para depois fazer uma especialização em Bíblia (Mestrado, Doutorado). A partir da minha experiência, posso afirmar que é um caminho que vale a pena ser percorrido.

O LÁBARO: A fé é viva e precisa passar por amadurecimentos para ter cada vez mais qualidade. Como o estudo bíblico pode ser útil para o amadurecimento da fé?

Prof. Walter: Realmente, a fé, como resposta positiva à Revelação, pode ser vista como um processo no qual a gente espera crescer. É o que mostram os diversos personagens que a tradição bíblica resgata como exemplos de fé: desde Abraão até Paulo. Nenhum deles, com efeito, é descrito como alguém que alcançou sua meta apenas com seu primeiro “sim”. Sua atitude de fé foi testada e aprovada continuamente pelo mesmo Deus que os chamou.

Para nós, com a possibilidade concreta de termos uma Bíblia nas mãos (não sempre foi assim), o convite para descobrir o projeto de Deus contido nela, é ao mesmo tempo privilégio e responsabilidade. Ler e estudar a Bíblia é ferramenta possível e necessária para entender o projeto de Deus e nosso lugar dentro do mesmo. Os abundantes subsídios dos quais dispomos não nos permitem fugir desse compromisso.

O LÁBARO: Dê-nos algumas dicas para podermos ler a Bíblia e tirarmos bons frutos dessa leitura.

Prof. Walter: A Sagrada Escritura, por ser fruto da reflexão da vida de um povo com seu Deus por mais de um milênio, se apresenta para nós como um desafio de leitura e compreensão. Por essa razão, faz-se necessário algum tipo de guia que nos conduza por suas páginas. Falando de subsídios escritos, hoje temos a disposição vários tipos de guias-de-leitura, seja de partes da Bíblia, seja de cada livro em particular. Eis ali um caminho para quem quiser enfrentar uma leitura individual da Bíblia.

Porém, há um caminho complementário. Refiro-me aos diversos grupos ou círculos bíblicos presentes nas realidades eclesiais. Eles não prescindem da presença de um guia preparado, nem da leitura individual de seus membros, mas possibilitam a partilha da mesma caminhada. São oportunidades de leitura e reflexão que alimentam o espírito comunitário, que manifestam a dimensão comunitária da fé cristã. Eis ali um caminho melhor para a leitura bíblica.

Por Pe. Marcelo Henrique
Fotos Sílvia LetÍcia

Fonte: Jornal O Lábaro – edição setembro/2016

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