Não me lembro se já contei este caso aqui, mas se contei, conto de novo; talvez você não tenha visto. Resolvi dar um tom de humor às nossas “Memórias” desta vez, apesar da iminência em ter sido um caso trágico o que aconteceu.
A história envolve o dom Antônio Miranda, bispo de Taubaté de 1981 a 1996, e o padre Fred. O Fred nem era padre ainda; faltavam alguns meses para a sua ordenação. E dom Antônio era bispo novo, ainda, na diocese de São Francisco das Chagas.
Quem me contou foi o próprio padre Fred, em uma conversa quando eu preparava a biografia de dom Antônio, em 2019.
O ano era 1981 e dom Antônio fora convidado a presidir uma cerimônia de Crisma na cidade de Caraguatatuba. É provável que o Fred, ali pelos seus trinta anos, ainda nem gozasse de tanta confiança por parte do bispo, muito cedo que era para se conhecerem melhor. No entanto, dom Antônio sabia que era ele quem transportava os seminaristas numa Kombi emprestada, em passeios que faziam esporadicamente. “Vendo que eu era meio que ‘motorista’ do seminário, me intimou para a viagem”, contou o padre Fred; “nem tínhamos tanta intimidade – afinal, fazia dois ou três meses que dom Antônio havia tomado posse em Taubaté.”
Bispo novo, carro novo, pelo jeito. Uma Belina zerinho, tinindo, cheirando a borracha, ou a couro, ou a courvin, como preferir. Novinha, o que não deixa de ser uma preocupação para o motorista, evidente.
Pois bem.
O Fred não me relatou a velocidade em que se encontrava, mas que não era nada abusivo até porque dirigir um carro estalando de novo numa estrada como a antiga Tamoios nem dá mesmo para posar de piloto de Fórmula 1. Mas o fato é que o pior aconteceu.
Estavam numa reta. E, de repente, surge um Chevette na contramão vindo em direção ao carro do bispo. Lembro ao leitor que naquele tempo a Tamoios era uma pista só. O padre Fred lembra que “… era uma estrada perigosa, sem contar a grande responsabilidade de cruzar com algum motorista irresponsável voltando do litoral (…); pois foi exatamente esse tipo de motorista que deu de cara comigo – tinha que ser comigo – metendo seu Chevetinho com tudo na pista frontal em que nós estávamos, ele na contramão”. O padre não me disse se invocou algum santo, ou Nossa Senhora, ou o próprio Deus naquele momento, mas se lembra perfeitamente do seu novo bispo gritando: “Olha aquele louco!”.
Foi tudo muito rápido. Reflexo em dia, o motorista quase que por instinto optou por não jogar o carro para a esquerda, entendendo que essa seria a reação natural do motorista que vinha em sentido contrário, para evitar uma colisão. Escolheu o acostamento para desviar-se. “Mas, que acostamento? Na verdade era um degrau!”, conta o padre Fred.
E o pior aconteceu. A Belininha nova capotou por várias vezes com os dois ali dentro, parando somente depois que as quatro rodas ficaram para cima.
“Putz! Matei o bispo!”, pensou o seminarista. (Putz é por minha conta). Fred deu um jeito de sair e “Meti um ‘coice’ no para-brisa, terminei por estilhaçá-lo. Silêncio total lá dentro”.
Foi a hora que ele viu a viola em caco. Quem se lembrou das palavras do Fred foi o próprio dom Antônio, que ria divertido contando o pavor do seu seminarista:
– Dom Antônio! O senhor tá vivo?
Se estivesse desacordado – até parecia, pelo silêncio reinante – teria acordado na hora.
– Tô, meu filho… Me tire daqui.
Mais tranqüilo, Fred acabou com os estilhaços, limpou bem, e puxou dom Antônio – naquela ocasião, com sessenta e um anos – e o arrastou para o acostamento.
O mais insólito veio depois.
Sacudida a poeira, Fred pegou suas maletas com o báculo, a mitra e os paramentos e… pronto! Dom Antônio estava em pezinho, inteirinho, apenas esperando uma carona para chegar a Caraguá a tempo de realizar a Crisma. E chegou.
E assim foi. E como providência pouca é bobagem, o médico que o atendeu no pronto-socorro de Caraguá foi um ex-aluno seu, dos Sacramentinos, lá de Manhumirim-MG.
Fred voltou para Taubaté no carro da Polícia Rodoviária.
Henrique Faria