As mãos missionárias do Pai

No século II da era cristã, Santo Ireneu de Lião, numa maravilhosa intuição místico-teológica, afirmava que o Filho e o Espírito Santo são “as duas mãos com as quais Deus Pai age no mundo”. Partimos dessa sua inspirada afirmação para tecer esta nossa reflexão sobre a missão da Igreja.

Uma das intuições mais fundamentais do Concílio Vaticano II, que marcou época porque representou um esforço de fazer a Igreja voltar às suas fontes, foi a redescoberta da dimensão missionária de todos os batizados.

Podemos dizer que, no Concílio, o Decreto Ad Gentes, que trata da atividade missionária da Igreja, foi um dos documentos conciliares mais debatidos e reformulados (passou por oito redações!). Isso é compreensível se, à luz das palavras de Paulo VI, na Exortação Evangellii Nuntiandi, entendemos que a missão constitui o próprio ser e identidade da Igreja: ou ela é missionária ou não será a Igreja de Jesus Cristo! Ela existe para a missão!

Deus, em Seu “amor fontal”, mesmo sendo Aquele “que habita uma luz inacessível” (1Tm 6,16), deseja ardentemente estar e viver em comunhão com suas criaturas. Toda a Bíblia relata a aventura desse Seu desejo incontrolável, que o Concílio interpreta como um desejo que se torna “desígnio de Deus Pai”, e que assim desencadeia toda uma corrente missionária. Portanto, tudo começa assim: o Pai que, deseja ardentemente fazer-se presente em comunhão no mundo, cria a missão, e o faz de duas maneiras fundamentais: através do Filho e do Seu Espírito Santo, as “duas mãos do Pai”, no dizer de Santo Ireneu. O primeiro se faz missionário pela encarnação no seio de Maria, e o segundo, pela habitação no interior de cada batizado, de cada pessoa que faz e vive o bem, assim como no âmago de todas as realidades criadas. Portanto, missão é a ação das duas mãos com as quais a Santíssima Trindade se autocomunica em nosso mundo. Ação divina trinitária que denominamos de “ação salvífica”.

Realizada sua missão redentora, Deus Filho, mesmo sentando-se à direita de Deus Pai (Mc 14,62; Cl 3,1, etc…), deseja permanecer ainda no meio de nós, não só através de Deus Espírito Santo que ele envia, mas também de forma visível. Para tornar isso possível, Deus Pai estende seus dois braços e de suas duas mãos emana a pedagogia amorosa da Igreja, pensada por Deus desde as origens do mundo; preparada por Ele na história do povo de Israel e na antiga aliança; fundada em Jesus Cristo e finalmente manifestada pela efusão do Espírito Santo (cf. LG 2).

Nesse sentido é que afirmamos que somos prolongamento das duas mãos do Pai que são o Filho e o Espírito. Por isso, como diz o Concílio, a Igreja é “Povo de Deus” (LG II), que se efetua no “Corpo Místico de Cristo” (LG I, 7) constituído no Espírito Santo (LG 48b).

Dessa forma, como prolongamento de Cristo, no Espírito, compete a nós, Igreja, prolongar também Sua missão. Toda prenhe de missionariedade, a Igreja é como a mulher grávida do Apocalipse, gritando o Evangelho “entre as dores do parto, atormentada para dar à luz” (Apc 12,2) os filhos de Deus a quem Ele deseja ansiosamente salvar. E assim como o Espírito ungiu o Filho em sua missão histórica, unge também agora, pelo batismo, os filhos da Igreja em seu compromisso missionário. Portanto, somos hoje as mãos missionárias ungidas do Pai, com as quais Ele entrega ao mundo o Seu amor e pode ser reconhecido.

O Concílio fala da Igreja como “sacramento universal da salvação” (LG 48), o que significa que compete a ela sinalizar e realizar no mundo de hoje os gestos salvíficos que emanaram da vida e da prática de Jesus de Nazaré. Assim constituída, ela tem consciência de que lhe foram entregues por Cristo todos os meios necessários para isso.

Daí, podemos então entender que a Igreja de Cristo é “católica” sobretudo em dois sentidos: enquanto detém em seu seio a universalidade dos meios necessários para a salvação e enquanto, justamente por isso, em obediência à sua vocação sacramental, é chamada a apresentar esses meios ao mundo todo.

Chegamos então ao cerne da compreensão da missão da Igreja. Não consiste em instrumento ou estratégia de arrebanhamento de fiéis. Missão é sair pelas estradas do mundo oferecendo a todos os povos (ad gentes) o que é necessário para se chegar à salvação: a Palavra de Deus e os sacramentos que, devidamente articulados, compõem, com outros elementos, o “kit” da salvação.

A missão “é uma só e a mesma em toda parte e em qualquer situação” (AG 6): anunciar Jesus Cristo e a vida nova e realizadora que dele podemos receber. Essa vida nova é a salvação da qual a Igreja é sacramento, que “atinge o homem inteiro e desenvolve em plenitude nossa existência humana” em todas as suas dimensões. Assim, passamos a viver uma vida nova em Cristo, que “é participação na vida de amor do Deus Uno e Trino” (DAp 356-357).

Portanto, somos hoje os prolongamentos de Cristo e de Seu Espírito. Somos as mãos missionárias do Pai que pelo mundo todo apontam o caminho da salvação, na própria terra ou em países estrangeiros… Mãos missionárias de Deus que modelam na massa das realidades da família, do trabalho, da sociedade, da política… um mundo mais justo e fraterno… Mãos missionárias que se juntam em postura de oração, ou que se abrem no abandono e entrega de si mesmos na consagração, nos claustros ou nos leitos de dor… Mãos missionárias do Pai que se metem generosamente na massa dos pobres, dos necessitados, dos doentes e dos abandonados de toda espécie… Mãos missionárias do Pai que se unem formando uma só Igreja que prega o Senhor Jesus como caminho único de salvação…

Concluindo, convido o leitor a pensar seu chamado batismal à missão. Recordo que podemos –e devemos- ser missionários em qualquer estado de vida cristã. Irmãos e irmãs, sacerdotes, consagrados e leigos, nos precederam corajosamente nessa missão, cada um deles em sua vocação pessoal. Foi a consciência de ser prolongamento dessas duas mãos missionárias do Pai, que forjou missionários como o Cura de Ars, pároco zeloso na missão entre os seus; como Francisco Xavier, no ardor do anúncio a povos que ainda não conheciam o Cristo, como Terezinha do Menino Jesus, enquanto chama que intercede, aquece, ilumina e se imola pela vida de contemplação; como Francisco de Assis ou Madre Tereza de Calcutá, em sua paixão pelos pobres e abandonados; como Gianna Beretta em sua consciência madura e coerente de mãe cristã…, ou como um Franz de Castro, no exercício da luta pela justiça, ou ainda como um Thomas Morus, no exercício de uma política cristã e evangélica… A uma dessas formas cada um de nós é certamente chamado.
Pe. Osmar Cavaca
Igreja N. Sra. Rosa Mística
Jambeiro-SP

×